Os cornos da lua

Wezu sentou-se na esteira. Com as pernas estendidas e as costas muito direitas tal como lhe ensinaram as avós. Os modos das mulheres também falam e mostrar as costas direitas diz muito sobre a sua força mas também sobre os seus sacrifícios para cultivar a machamba e alimentar toda a família. Isto dizia sempre a avó N’weti e explicava que para manter as costas direitas as mulheres têm que reforçar os músculos desse lado do corpo e isso é um trabalho para a vida inteira. Enfim, Wezu olhava as costas direitas da avó e N’weti olhava as pernas estendidas dela e trocavam olhares silenciosos mas cheios de tempestades interiores.

E a manhã ia passando defronte delas. Os passaritos iam e vinham em voos incertos, talvez mesmo indecisos. As crianças tinham ido para a escola. A machamba já estava capinada desde os alvores do dia. Os homens, esses não estavam pela casa há muito tempo. Uns porque morreram e foram morar nas árvores; outros porque se perderam nas minas de ouro no Witwatersrand; outros foram para as estradas de Bagamoyo vender utilidades para os carros que nunca param para lhas comprar; outros, simplesmente desistiram de voltar para casa e ficam pelas barracas a beber o que dá. As duas, Wezu e N’weti iam olhando a peneira onde juntavam uma a uma as folhas da cacana para cozinhar mais tarde. Mas olhavam as folhas, uma a uma para ter a certeza que nenhum bichinho intrometido e perdido se queimaria nas águas ferventes da panela. Elas gostavam de se olhar e falar sem dizer palavra. Elas falavam e riam mas parecia que as bocas se apertavam ao invés de se abrirem. Era uma conversa que nenhum homem jamais iria entender. Isto é uma especialidade das mulheres sobretudo as que já estão fartas das fanfarronices daqueles que se incham para dizer: nós somos a cabeça e vocês, mulheres, são os ombros.

Isso é o que querem que nós sejamos. Em cima dos nossos ombros repousa o peso dos cestos cheios de fruta, mapira, mandioca ou milho; das enxadas; dos partos e das crianças que vêm com eles; dos sofrimentos que as nossas vaginas sofrem e adoecem; os pesos todos que as roupas lavadas são para os nossos dias no rio ou no tanque.

Dizer sem falar é mesmo um jogo bonito de se jogar. E já todas as folhas da cacana tinham sido inspeccionadas quando N’weti dobrou as costas e as pernas e deitou a cabeça no colo de Wezu. E disse: sabes uma coisa, estou com vontade de te contar um caso que me está a acontecer. Mas para isso tenho que dizer as palavras com som. Tu queres ouvir? Tu queres ficar aí com a minha cabeça para eu esfregar o meu coração enquanto digo? É que há uma dor que me atravessa o coração quando conto e penso neste caso.

Wezu nem precisou pronunciar-se porque já a palavra que diz sim tinha voado da cabeça dela e da boca dela para o regaço da avó. E então começou a conversa que traria naquela manhã os ventos e as areias dos desertos escancarados que sopram velozes e aguçados que nem facas pelas peles de muitas mulheres.

– A minha filha morava longe de mim. Muito longe. Ela precisava de mim. Ela precisava que eu estivesse perto dela. O que ela precisava é que eu seja de carne e osso na vida dela e não apenas uma lembrança ou então uma voz que fala pelos telefones.

– Mãe tens que vir para o pé de mim.

– Mas como se aí onde tu estás não tenho casa? É que eu só vivo onde posso ter a minha casa para que tu possas ter a tua.

– Mãe, eu sei que há terras por aqui sem ninguém. Podemos ir falar com o soba para ele te dispor umas terras para a tua casa e para a tua machamba.

– Como se nós as mulheres não podemos ter terras nossas?

– Mãe vem até cá e falamos com o soba Simba. Ele estudou na Itália. Viveu por lá mais de vinte anos e até andou na universidade. Ele já está misturado, já está viajado, ele já viu tanto mundo e tantas coisas. Ele já é um soba com mais futuros do que passados. Vem mãe, vamos falar com ele. Eu vou pedir um encontro e tu vens, mãe.

Sabes, Wezu, eu fui e nas três horas que o chapa demorou a chegar eu fui ensaiando o meu discurso para ele: Bençãos para ti soba Simba, que os teus dias sejam leves e as tuas noites mornas. Que os teus anos de reinado sejam felizes e ainda mais os do teu povo. Que os futuros e a justiça morem dentro do teu coração. E mentalmente fui fazendo planos e contas para a casa que ia ficar junto da minha filha.

Cheguei cansada das costas. As nossas costas direitas suportam muito mal as torturas daqueles bancos de chapa. O chapa parava quase em todos os quilómetros da estrada. Ora para recolher passageiros, quase todos homens; para deixar passageiros que se enfiavam no mato ainda o motor não tinha força para recomeçar a fazer andar o seu corpo metálico; ora para pagar refrescos aos polícias da estrada. É como um ritual. Mandam parar pedem documentos e exclamam: olha senhor chapeiro está uma dia difícil para mim, estou cheio de sede. Você não tem aí um refresco? E o chapeiro que é o diácono máximo de tal desventurada missa retira da caixa uma nota de 100, às vezes uma nota de 50 e segue. Impropérios só os diz quando já está entre o passado refresco policial ainda agora cobrado e o refresco que já se adivinha no horizonte da estrada. Enfim, sabes como é Wezu, não sei onde aprenderam a ser assim, esses polícias. Com as nossas mais velhas não foi, tenho a certeza. Mas deixa que te conte como foi que eu me fui por a ver os cornos da lua.

Cheguei e a minha filha estava à minha espera com um grande sorriso e um sobrolho franzido. Não entendi se estava feliz ou preocupada ou se simplesmente fazia exercícios para a cara poder dizer duas coisas diferentes ao mesmo tempo. Houve aquele abraço e os beijos nas crianças os cumprimentos para a família e o caminho de casa para andar. Em casa e depois de nos sentarmos na fresca sombra da amendoeira e beber um copo de água ela disse-me:

– Mãe consegui marcar o encontro com o soba Simba para amanhã de manhã bem cedo. Ele vai estar na casa da administração de Xixoxo com o seu conselho de anciãos. Isso é bom, não é?

E o sorriso desmontou o sobrolho franzido e abriu-se.

– Mas mãe, não podes ir assim vestida. Tu sabes, não sabes?

E foi a vez do sobrolho franzido enviar o sorriso da cara para o lixo.

– Tu sabes, não sabes?

Wezu, tu sabes que eu lutei no ANC e outros movimentos de libertação. Vivi em tantos países ora fugida dos homens armados brancos, ora a construir a revolução da independência. Vi subir as bandeiras novas, vi encherem-se os corações de alentos e as praças de gente alegre e feliz. Vi muitas coisas que não gostei também e durante todos estes anos, aqueles homens que a gente chama de heróis foram dizendo que a independência não é apenas da terra mas dos homens e das mulheres, que somos iguais porque temos os mesmos direitos. Mas nem era isso que nos entusiasmava a todas. O que mais queríamos era ter um lugar nessas histórias sem ter que reclamar esse lugar nessas nossas histórias. Então eu deixei de amarrar a capulana na cintura todos os dias e só amarro quando quero. Eu não quero o lenço na minha cabeça a não ser quando desejo cobrir o meu cabelo com as cores que escolho. Eu não dobro as minhas costas a não ser para apanhar as minhas tangerinas que caem das árvores por causa do vento!

– Mãe, tens que amarrar uma capulana na cintura e por o lenço. Ele não recebe as mulheres que não forem assim vestidas!

Wezu, tive vontade de gritar com ela e com toda a gente que ali estava: aonde estão os frutos da libertação, mulheres? Aonde enterraram o coração da liberdade que pagámos com o sangue das nossas vaginas e os nervos de aço dos nossos corações?

Contive-me porque ela é a minha filha e eu disse mais uma vez a mim mesma que mais valem os nervos de aço do meu coração do que a raiva semeada por essa coisa a que chamam tradição mas mais não é que um pé de bota calçada e suja em cima dos nossos seios para que o grito não saia e o medo nos emprenhe nas veias mais fundeiras do nosso ventre.

– Sabes o que penso disso, filha e afinal ele não esteve em Itália? Não viajou? Não aprendeu nada com a vida que lhe atravessou futuros à frente dos olhos? Mas se queres que seja assim eu amarro a capulana, ponho o lenço mais castanho triste que houver e vamos falar com esse leão mais velho e tolo que todos os cães do mato.

E fui de manhãzinha, o sol ainda se despedindo da lua que mostrava os seu belos cornos impondo-se como uma coroa mais do que real: nobre e altiva, vermelha e farta.

No fundo da estrada de chão lá estava a casa redonda e baixa onde os conselheiros, todos homens, todos velhos, todos secos, todos seguros de si, todos maldosos para as suas mulheres, todos eles se reuniam na escuridão circular interior. Junto à pequena e única abertura da casa ficava o soba sentado. Ele era o único visível e o único que tinha direito à luz e à fuga acaso houvesse um ataque. Todos os outros velhos secos ficariam no interior e morreriam nas labaredas do fogo atirado ao telhado de palha. Tudo aquilo era uma espécie de caricatura das histórias que alguns vovôs nos contavam sobre os tempos longínquos. Nem era o que foi e já não era o que é. Apenas uma espécie de melancolia dos poderes de mandar fazer, mandar calar, mandar dobrar a espinha. O soba Simba sentado no banco de três pernas olhava-nos. Distingui nele e mais do que tudo a enorme barriga tão inchada como um malambe e luzidia como as escamas de um peixe. A minha filha alertou-me então:

– Mãe, baixa os olhos, não olhes para ele directamente, está bem? É o respeito.

Quis-me vir embora e disse-me a mim mesma que a palhaçada estava a ir longe demais. Mas depois olhei a minha filha e aguentei pensando mais uma vez que mais valem os nervos de aço do meu coração do que a raiva semeada por essa coisa a que chamam tradição mas mais não é que um pé de bota calçada e suja em cima dos nossos seios para que o grito não saia e o medo nos emprenhe nas veias mais fundeiras do nosso ventre. E assenti desalentada, mas arriscando que a minha fúria incontrolada me traísse como o fazem os homens nos bordeis de estrada e nas casas das nossas vizinhas. E quando não são meninas já nos alegramos por não terem ofendido além de nós as puberdades mal semeadas pelas vidas delas.

– Ai que raiva! Mas o silêncio da minha voz manteve-me amarrada ao lenço à volta da cabeça e os meus olhos ficaram detidos pela visão de uma formiga que carregava nos seus ombros comida para mais de cem dias.

– Então, mulheres, o que querem de mim?

– A minha filha vive longe de mim e eu queria vir viver para junto dela. Preciso de terra para fazer uma casa e a minha machamba. Sabemos que tu tens terras vazias.

– O quê? Gritou ele com um ronco profundo acompanhado das gorduras da sua barriga enormíssima.

– Porque haveria eu dar terra a uma mulher? Tu não sabes que as mulheres não têm direito a ter terra? Porque não trouxeste o teu marido contigo? Como te atreves a pedir-me terra?

Eu rodei os pés para sair dali imediatamente mas a minha filha puxou com força a ponta da minha capulana e percebi que ela queria que eu tentasse mais uma vez, com mais e melhores argumentos, com mais choros e ranger de dentes com súplicas e favores. Mas eu estava determinada e apenas consegui dizer-lhe:

– Como está a tua saúde? Pareces um pouco doente? Quase não consegues andar.

– Tu és médica por acaso? E eu nem consegui responder porque a minha filha fibrilou numa voz sumida mas clara: ela é médica tradicional, sim, soba Simba. Eu fiquei ainda mais enraivecida mas controlei perfeitamente o meu desvario interior para lhe perguntar:

– Precisas de alguma coisa que eu possa fazer por ti? E olhei para o fundo da casa na esperança de ver algum branco dos olhos dos homens secos que ali estavam a assistir à minha humilhação. Mas não vi nada só ouvi o resfolgar das palhas das esteiras onde estavam sentados e amarrados às invenções a que chamam de tradição. Nesse momento, o Simba, homem ainda novo e viajado mas que parecia nunca ter saído dali, com o cérebro preso em ideias carcomidas e deformadas pela ambição do poder, falou:

– O meu pau já não funciona. E isso é mau para a minha autoridade dentro de casa e também aqui na casa do governo. Há muitos meses que o meu pau foi comido pelas formigas do medo. E sem pau entre as pernas a funcionar as minhas mulheres e os meus homens não me respeitam. Sei que falam atrás das minhas costas e tenho quase a certeza que vi um sorriso de escárnio na boca de uma das mulheres mais velhas. Achas que podes fazer alguma coisa por mim?

Wezu, apertei os dedos das duas mãos até me doerem para não responder que o pau dele, de todas as coisas da vida, era o que menos me interessava. Mas mais uma vez, com todas as clandestinidades aprendidas em tantos séculos e milénios de resistências deixei que a minha voz enrouquecesse mas falasse para ele.

– Sim, posso ajudar-te. Sei o que fazer.

– Tu és feiticeira? Lembrou-se ele de perguntar antes que fosse tarde eu já tivesse lançado um feitiço em cima do pau dele.

– Não sou feiticeira. Apenas sei como tratar do teu mal. Para isso tenho que voltar para casa e fazer umas bebidas que te vou mandar. Tu ficas e só podes comer as verduras da machamba das tuas mulheres, a abóbora e o feijão. Tens que beber muita água do rio filtrada pela terra vermelha onde está construída a tua casa. Nada de cerveja nem de marufe. Tens que andar todos os dias daqui até onde os cornos da lua se levantam em cada noite. Vai devagar mas anda. Se fizeres o que te estou a dizer afirmo que em seis meses o teu pau vai funcionar e o teu corpo vai agradecer.

– Mulher, se isso for assim dou-te toda a terra que tu quiseres.

Eu não respondi apenas rodei nas pernas e fui embora arrancando o lenço e a capulana assim que a poeira da estrada diluiu os nossos corpos, meu e da filha, na nuvem das suas partículas. Recebi mil khanimambu e obrigadas em todas as línguas que a minha filha é capaz de pronunciar e ainda tive direito a um uswa de milho acabado de pilar com uma m’boa com camarão seco. Fui-me embora naquele mesmo dia no chapa das dores das costas mas a minha cabeça não parava de pensar em tudo aquilo. E assaltavam-me, a cada refresco policial, a cada entrada e saída dos homens da pequena camioneta, as correntes que ainda atam tantas pessoas à ilusão de que pode haver uma revolução onde as mulheres são apenas os enfeites da festa, os ombros das cargas pesadas, as cabeças escondidas, as mãos emaranhadas nos serviços vis.

Mas como os meus nervos de aço do meu coração são maiores e mais fortes que a raiva semeada por essa coisa a que chamam tradição mas mais não é que um pé de bota calçada e suja em cima dos nossos seios para que o grito não saia e o medo nos emprenhe nas veias mais fundeiras do nosso ventre, decidi fazer a beberagem e enviá-la. Espremi maracujá, pilei folhas de moringa, juntei água, mel e flores de hibisco. Fiz 12 garrafas e preparei a encomenda. Pedi notícias. Arregimentei o acordo que me dava as terras e o direto de construir a minha casa e plantar os meu cajueiros. Pedi respostas prontas e claras.

Passados os seis meses vi que um séquito de soba se dirigia à minha casa. À frente vinha, sentado no jipe empoeirado, o Simba, o soba de Xixoxo. Muito mais magro fez questão de demonstrar a sua proeza. Porque a proeza afinal era dele, dizia ele.

– Segui à risca os teus remédios. Tenho força e durmo bem. Como apenas o que me mandaste e bebi três vezes por dia um copo do teu medicamento. E agora as minhas mulheres já não se podem queixar porque o meu pau está de novo a funcionar. Elas dizem que até melhor do que quando eu era novo. Estou tão feliz que resolvi que toda a gente de Xixoxo só pode comer hortaliça, abóbora e feijão nhemba. Beber só podem beber água filtrada pela terra vermelha. Achas que fiz bem? Como eu mando elas e eles me obedecem mas falta saber fazer os medicamentos. Trouxe a mulher mais bonita de Xixoxo para ficar contigo e aprender a fazer esse sumo de espíritos fortes que me deste.

– Wezu, sabes o que eu fiz? Levantei a cabeça e olhei-o no meio dos olhos. Estava sem capulana nem lenço e ainda deixei cair a blusa pelos meus ombros abaixo e empinei os meus mamilos diante dele. Falei forte, falei alto, falei sem medo mas sem o deixar entrar no pátio da minha casa:

– Se ela quiser ficar pode ficar. Mas só se ela quiser ficar e os olhos me confirmem que ela quer mesmo ficar.

Simba e a comitiva espantaram-se com os meus preparos e a minha voz cheia de afirmações em vez de pedidos. Mas não entraram no meu pátio e pediram à menina para ir falar comigo. Falámos até que a noite avançada já mostrava a lua grande e vermelha que ansiava por deixar os seus cornos à vista de toda a gente mais do universo. Ela disse que sim de várias maneiras e eu a recolhi e a ensinei. Voltou a Xixoxo forte e resoluta e mesmo quando amarra a capulana e o lenço na cabeça ela mostra a altivez daquelas que nem a fúria amansa.

Fiquei com as terras, fiz a casa e as machambas mas desaguentei com as memórias de tudo. Já lá não vou há anos e a minha filha mudou-se para perto de mim. Não havia outro remédio para ela senão voltar para a nascente dos dias dela.

– Wezu, agora já é noite e o teu regaço está quente como um ninho. A cacana já foi escaldada e está na hora de bebermos aquela cervejinha gelada com castanha. O que achas? Estás comigo, não é? Tu também sabes que a raiva semeada por essa coisa a que chamam tradição mas mais não é que um pé de bota calçada e suja em cima dos nossos seios para que o grito não saia e o medo nos emprenhe nas veias mais fundeiras do nosso ventre é para rasgar e pisar debaixo dos nossos pés, não sabes?

Suspirou-se profundamente na luz que subia pelas luzes amarelas das lâmpadas da casa.

A luta continua!

Teresa Amal

Teresa Amal é investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal e escreveu, dentre outros, o livro Never Trust Sindarela: feminismos, pós-colonialismos: Moçambique e Timor-Leste. Ed. Almedina.

Comments are closed.

  • mídia livre

    junho/2024