A (in)Segurança Alimentar em São Miguel Arcanjo e a pandemia

As famílias do Observatório Popular Cidade do Anjo envolvidas no Projeto Emergência: Soberania Alimentar e Nutricional têm uma composição de, em média, 6 pessoas. Em todas as presentes na lista do OPOCA, a soma das cestas básicas oferecidas pelo conjunto de políticas públicas não é suficiente para preencher a tabela nutricional de referência básica capaz de garantir a suficiência alimentar. Para a montagem das Sacolas de Alimentos que o OPOCA entrega semanal e quinzenalmente, fizemos a extrapolação da tabela nutricional para cada família, levando em conta a quantidade de membros e de crianças com menos de 9 anos. Tal extrapolação também nos serve como análise. 

A cesta básica do tamanho P (que é ofertada ocasionalmente pelo Centro de Referência de Assistência Social) dura, com restrições alimentares, 15 dias para uma família de 4 pessoas. A cesta básica ofertada pelo governo do estado de SP dura os mesmos 15 dias para as 4 pessoas, porém, com menores restrições. Por isso o objetivo inicial do Projeto Emergência foi o de reforçar as famílias com uma boa quantidade de produtos de hortifrúti doados pelos produtores locais e agregando o máximo de itens de cesta básica para tentar preencher a necessidade alimentar e nutricional de cada grupo familiar. 

Até a semana 7 de pandemia, praticamente nenhuma família havia recebido o auxílio emergencial do Governo Federal. Com isso, em um contexto onde as diárias de trabalho haviam praticamente acabado, as 7 semanas foram suficientes para gerar, num conjunto de famílias das periferias em que o OPOCA está envolvido, dívidas produzidas por até 2 boletos de água, 2 boletos de luz, gás de cozinha, aluguel, dentre outras. Assim, o auxílio emergencial foi em grande parte destinado para o pagamento de dívidas passadas, gerando um crédito muito tímido para compra de alimentos, por exemplo.

Em casos em que as famílias são formadas por 6 membros ou mais, as dificuldades aumentam, porque as cestas básicas não são proporcionais ao número de integrantes de uma mesma casa (com exceção das cestas escolares). As famílias com 8 ou 10 pessoas, por exemplo, tem uma quantidade proporcional muito menor de alimentos recebidos pelas políticas públicas e possuem contas mais caras para pagar, gerando uma situação de ainda maior dificuldade e estresse. Tal situação em meio à pandemia, onde as oportunidades de trabalho diminuíram de forma drástica, gerou ainda mais apreensão e insegurança. Nesse sentido, o apoio comunitário de distribuição de alimentos organizado pela Casa OPOCA foi fundamental porque promoveu, no ambiente em que atuou, a diminuição da insegurança alimentar e a possibilidade de um pouco de tranquilidade ao saber que o alimento básico estaria realmente garantido. 

A partir da semana 7, mesmo com o pagamento do auxílio emergencial de R$600,00 e R$ 1.200,00 pelo Governo Federal, a quantidade de pessoas nos interceptando nas ruas enquanto levávamos doações aumentou rapidamente. A grande reclamação foi a perda de trabalho de um ou mais membros da família. Com o desemprego e as dívidas, os R$ 600,00 ou mesmo os R$1.200,00 não foram suficientes para pagar todas as contas de aluguel, luz, água, gás e supermercado. Daí a necessidade dessas pessoas em pedir doação pela primeira vez em muito tempo. 

Para se ter uma ideia, comprar no supermercado todos os itens da nossa tabela nutricional de referência custava em maio de 2020 para uma família de 4 pessoas cerca de R$ 400,00. Para uma família de 6, que é a média de integrantes de nossa lista, R$ 600,00. Significa que o auxílio emergencial ou cobre as despesas alimentares ou paga as contas mensais. Nos casos das famílias que recebem 2 auxílios, entendemos que a melhora virá a partir somente do recebimento da segunda parcela, e o apoio com alimentação poderá até ser reduzido (mas não cessado). Para as famílias com apenas um auxílio e para as mais numerosas (8 ou 10 membros) a insegurança alimentar persistirá e o apoio comunitário deverá ser vital. 

As políticas públicas (com atenção especial às municipais) não estão acompanhando o drama das famílias das periferias e favelas de São Miguel Arcanjo e, para além do atraso das medidas tomadas, não dão respostas suficientes para a diminuição dos riscos sob os quais boa parte da população está submetida. Nossa articulação na Casa OPOCA, além de necessária, escancara o descaso e o abandono social de quem está em dificuldade no momento, e retrata um episódio triste de nossa história municipal. O que trará um pouco mais de dignidade à nossa cidade, é o fortalecimento da solidariedade comunitária.

Daniel Knob

Diretor de Expansão do OPOCA. Especialista em energias renováveis, é Doutor pelo IPEN-USP na área de Engenharia de Materiais, com foco em Silício para indústria de energia solar fotovoltaica. Engenheiro Mecânico pela UFSC. Trabalha há dez anos em projetos sociais e espaços voltados para Sustentabilidade e coordena o Projeto Emergência: Soberania Alimentar e Nutricional. 

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    junho/2024